25 de fevereiro de 2010

Construção de uma casa Mbyá

Trecho de um trabalho de mestrado que descreve o processo de construção de uma moradia de pau-a-pique de taquara com taipa de mão, própria dos Mbyá-Guarani.

Por Nauíra Zanardo Zanin

A coleta de dados realizada na Tekoa Koenju, em São Miguel das Missões, por ter sido realizada em várias visitas e com maior período de permanência que nas demais comunidades, permitiu o acompanhamento de etapas do processo construtivo de diferentes habitações. Também ocorreu a observação de uma etapa construtiva, registrada em vídeo pela equipe do INRC, no dia anterior à chegada do pesquisador a campo, de modo que foi possível observar a execução em vídeo e, posteriormente, visitar a construção na etapa em que se encontrava.

Os dados são referentes à observação de mais de uma construção, sendo observadas diferentes etapas, separadamente. Normalmente, a construção é interrompida em caso de chuva, pois a maioria das etapas depende de tempo bom, inclusive para o tratamento de alguns materiais. As etapas de construção das casas foram acompanhadas entre a primavera e o outono (outubro de 2005 a maio de 2006). Aparentemente, não há uma época definida para a construção de casas, pois mesmo durante o inverno de 2006 ocorreram novas construções.

Segundo dados levantados, a construção de uma casa pode levar de uma semana a mais de um mês, de acordo com a técnica utilizada e do local onde será construída, pois depende da acessibilidade aos materiais e influi na durabilidade da edificação. Segundo o Mbyá-Guarani 7, que é um ogapuá (construtor), para a construção de uma casa de taquara completa, com barro, são necessários 35 dias, em 4 a 5 pessoas. Um dos fatores que pode retardar a construção é a coleta do material: “demora para fazer a casa porque tem que buscar o material e preparar” (Mbyá-Guarani 12).

Apresenta-se o corte padrão das edificações (Figura 21), cuja execução foi acompanhada em campo. Neste desenho técnico está representada a nomenclatura Mbyá-Guarani utilizada para os elementos construtivos.

Alguns podem receber variadas denominações (ijytá - apoio, madeira, suporte). Houve a intenção de representar fielmente as diferentes partes da edificação, como a estrutura (ijytá), amarrações (ojokuaá), cobertura de taquara batida (takua oje kava’ekue), fechamentos (ikorá) e, em uma das paredes é representado o recobrimento com taipa de mão (yvy ó). Este desenho gráfico tem o intuito de auxiliar a compreensão das diferentes etapas construtivas, descritas adiante, de acordo com as observações e entrevistas realizadas em campo.



A seguir será descrita a seqüência do processo construtivo de uma casa da tipologia pau-a-pique de taquara com taipa de mão, ocorrente na Tekoa Koenju em São Miguel das Missões:

ETAPAS PROCESSO CONSTRUTIVO
TIPOLOGIA PAU-A-PIQUE DE TAQUARA COM TAIPA DE MÃO - TEKOA KOENJU
1 FUROS PARA FUNDAÇÃO
A primeira etapa na execução de uma casa são as fundações. São definidas as distâncias entre pilares, que correspondem às dimensões da casa. A forma é retangular e as dimensões variam, tendo como medidas mais freqüentes: 3,00x4,00 m, 4,00x5,00 m e 4,00x6,00 m. Na marcação dos furos podem ser utilizados pedaços de taquara, linha de pesca ou cordas, buscando-se distâncias equivalentes para os lados opostos. A fundação é o próprio pilar estrutural, que serve de estaca e os furos são circulares, com aproximadamente um palmo de diâmetro. São executados com cavadeira manual (yvy joá) e a terra também é retirada manualmente, de modo que o furo não excede em profundidade o comprimento do braço daquele que o executa. Em uma construção foram medidos buracos de 40 cm e, em outra, de 60 cm de profundidade.

2 LIMPEZA DO TERRENO
Antes de construir a casa, o pátio é limpo de todas ervas e gramíneas. Assim é configurado e mantido durante todo o uso da edificação. Depois de executarem os furos, começam a capinar com enxada, limpando o terreno sob o sol do meio-dia, para eliminar as raízes. O pátio deve ficar completamente limpo, com a terra exposta.

3 COLETA DO MATERIAL PARA ESTRUTURA
No dia seguinte à limpeza do terreno, saem pela manhã para o mato, a fim de coletar a madeira para a estrutura, que é cortada e carregada de carroça até o local da construção. Para os pilares, são preferíveis os troncos e galhos em forquilha, que devem ter aproximadamente 13 cm de diâmetro. São necessários seis pilares, dois com aproximadamente 250 cm e quatro com aproximadamente 150 cm. Para as vigas de cumeeira e frechais são preferíveis troncos de árvores retas, compridas e um pouco mais finas. São necessárias três vigas, com aproximadamente 500 cm de comprimento e 10 cm de diâmetro. A madeira deve ser cortada, preferencialmente, na lua minguante, assim como os demais elementos vegetais utilizados na construção. Os materiais cortados na lua nova terão menor durabilidade, sendo atacados por fungos e cupins: “para colher a madeira da casa é melhor na lua cheia, minguante ou crescente. Na lua nova não pode, porque fica com muito bicho” (Mbyá-Guarani 7).

4 MONTAGEM DA ESTRUTURA - IJYTÁ
A montagem da estrutura ocorre depois de deixarem os troncos lisos, sem felpas ou cascas. Quando, durante a coleta, não são encontrados troncos com terminação em forquilha, é necessário entalhar a cabeça do pilar para assentar a viga. A estrutura é simplesmente apoiada e não recebe amarrações, mesmo nos casos em que a estrutura é mais leve. Os pilares são encaixados nos buracos de fundação: os dois maiores, na mediatriz da fachada, e os quatro menores, nos cantos. A profundidade da estaca garante a rigidez estrutural. Depois de montada a estrutura, a altura final dos pilares centrais é de, aproximadamente, 2,00 m e laterais, de 1,00 m.

5 COLETA DO MATERIAL PARA COBERTURA
A madeira para a cobertura pode ter sido coletada juntamente com a madeira para a estrutura da casa, mas nos casos observados, a coleta ocorreu depois de montada a estrutura. A madeira para os caibros é bem mais delgada que a utilizada na estrutura, tendo aproximadamente 5 cm de diâmetro. Para os casos observados, devem ser coletados sete troncos finos para os caibros, com cerca de 250 cm de comprimento. A coleta da taquara também deve ser na lua certa (minguante), para que tenha maior durabilidade. Na lua nova não se deve cortar, nem plantar. A taquara também é retirada do mato e transportada, de carroça, até o local da construção, onde é trabalhada. É preciso deixar secar as taquaras ao sol, antes de usar. Antes de secar, as taquaras são talhadas no comprimento com facão. O cipó também deve ser cortado na lua minguante. Segundo Costa e Malhano (1987), é melhor colher o cipó em época de chuvas e mantê-lo molhado, para que permaneça maleável até sua utilização.

6 MONTAGEM COBERTURA - TAKUA OJE KAVA’ EKUE
Os caibros são amarrados firmemente às vigas da cobertura com cipó e podem receber um entalhe, para o melhor encaixe das peças. Acima dos caibros são enlaçadas ripas de meia taquara, com a parte interna voltada para baixo. Para produzir as telhas de cobertura, a taquara é talhada no sentido longitudinal e depois é batida para que se abra, formando uma folha. Primeiro, a taquara sofre este processo de rompimento das fibras, para, posteriormente, secar ao sol. Depois de seca, é dobrada no sentido transversal, com a superfície interna da folha para fora, e encaixada nas ripas de meia taquara, envelopando-as. As telhas (takua oje kava’ ekue) devem se sobrepor, a fim de cobrir a estrutura do telhado. Na cumeeira, as telhas de taquara são colocadas abertas e amarradas nas ripas. Em alguns casos podem ser colocadas taquaras enlaçadas com cipó, no sentido longitudinal do telhado, acima das telhas, para melhorar a fixação das mesmas.

7 FECHAMENTO DAS PAREDES – IKORÁ
O fechamento das paredes, observado na Tekoa Koenju, pode ser executado com taquara, troncos ou tábuas de pindó cravados no chão. Antes de iniciar o fechamento, externamente, são afixados travessões horizontais, pregados ou amarrados com cipó, na altura média dos pilares, para apoiar as tábuas. Nas paredes pode ser utilizada taquara verde, cortada ao meio e no comprimento necessário para fechar a parede. É feito um vinco na terra, para fincar a base da taquara. Ao serem colocadas no lugar, são enlaçadas com um cipó contínuo (emendado), com a parte de dentro da taquara voltada para o exterior. Depois, o vinco do solo é preenchido com terra, que é firmada com o pé. Caso decidam revestir as paredes com barro, taquaras cortadas ao meio são fixadas com cipó, externamente à parede, no sentido horizontal. A parte interior da taquara deve ficar voltada para fora.

8 COLOCAÇÃO DO REVESTIMENTO DE BARRO – INHARU KANGUÁ
Nenhuma das construções observadas foi revestida com barro durante o levantamento de campo. Contudo, foram observadas casas com este revestimento e levantadas informações junto aos entrevistados. Observou-se que este acabamento só é imprescindível na Opy e as demais edificações podem ficar sem barro. Segundo o Mbyá-Guarani 7, é colocada apenas uma camada de barro nas paredes. O Mbyá-Guarani 21 complementou a informação, dizendo que o acabamento com barro é feito por fora e por dentro. Em alguns casos, primeiro executam o revestimento por fora e depois fazem por dentro. Esta é uma etapa que deve ser executada com tempo seco. A técnica construtiva utilizada, conhecida como taipa de mão, é realizada sobre a estrutura de pau-a-pique, com o objetivo de preencher as frestas entre as varas de madeira que compõe o tramado. Os Mbyá denominam a parede revestida de barro de yvy ó. O Mbyá-Guarani 14, um jovem Mbyá, explicou que, para preparar o barro, separa-se a terra boa, sem pedras, com uma enxada. Adiciona-se água e então a mistura é bem pisada, até obter uma consistência homogênea para passar na parede. No transporte do barro até o local da construção, geralmente são utilizados carrinho de mão ou baldes. A mistura é, então, colocada na parede com a mão e depois alisada cuidadosamente. Se cair o barro, coloca-se novamente. O barro é alisado manualmente, deixando impressa em linhas horizontais a direção dos dedos daquele que o executou. No acabamento final da parede externa ficam visíveis as linhas horizontais das taquaras que fazem parte do tramado de pau-a-pique. Ao finalizar a construção, é sulcado um dreno no chão, evitando que a água da cobertura corra em direção ao interior da casa. Segundo o Cacique Cirilo (SEVERGININI & WANDAME, 2005) o contato com o barro durante a construção garante que a pessoa não esqueça mais como se constrói. Cacique Cirilo (SEVERGININI & WANDAME, 2005) explica que o piso da casa é de chão batido, criando um degrau do exterior para o interior, para proteger da umidade.


As informações deste capítulo foram obtidas junto às comunidades que fazem parte deste estudo, no intuito de registrar o papel da casa tradicional autóctone Mbyá-Guarani, para as pessoas que nelas vivem. Ressalta-se que as técnicas utilizadas fazem parte da tradição construtiva e, provavelmente, foram desenvolvidas e adaptadas ao longo de gerações a fim de atingir o desempenho que hoje apresentam. Sendo assim, é fundamental reconhecer que estas soluções são moldadas pela cultura e, desta forma, atendem às reais necessidades de seus usuários. Coloca-se, ainda, que o fortalecimento deste saber construtivo, traz consigo a valorização cultural e o reconhecimento dos maiores conhecedores das técnicas, materiais e significados destas habitações – os Mbyá-Guarani.

Fonte: http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/10697

- Veja também:
Diferentes usos dos bambus
Coberturas Naturais

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